terça-feira, 31 de maio de 2011

Ensaio sobre a "inguinorança" dos puristas hipócritas

Entendo como indispensável à compreensão do assunto a leitura do texto do professor Alexandre Costa. Regionalismos à parte, não há como deixar de exaltar o texto e seu autor.

Ensaio sobre a inguinorança dos puristas hipócritas
Alexandre Costa(*)

A recente polêmica sobre a aprovação do MEC à distribuição de um livro que incentivaria os “erros de português” tem mais “equívocos” do que aqueles que possam ser encontrados na obra em foco. A ignorância sobre a questão passa pela absoluta desinformação sobre o que seria, de fato, “erro”, “gramática” e “uso” e mesmo a tal “unidade da língua nacional”.
Assim, por exemplo, quando a obra afirma que seja possível falar “os livro” ou “nós pega os peixe”, não estaria, em princípio, incentivando que as pessoas comentam “erros”, mas assumindo um fato que é cientificamente provado há décadas pela linguística brasileira. Todos, absolutamente, todos os falantes da língua portuguesa brasileira cometem tais “erros” na fala, todos os dias, muitas vezes por dia, e em grande quantidade. Nos dois exemplos, há erros de concordância apenas, e somente de concordância de número.
As línguas são redundantes, ou seja, todas as línguas têm a propriedade de repetir elementos formais e semânticos para compensar o “ruído” que possa dificultar a comunicação. É por isso que qualquer falante do português encontrará a marca do plural nas frases seguintes:
1.       As casas verdes são maiores
2.       As casas verde são maiores
3.       As casa verde são maiores
4.       As casa verde são maior
5.       As casa verde é maior
Nenhum falante eliminará a marca de plural do artigo e algumas das frases são menos produtivas, quer dizer, mais improváveis, sobretudo a de número 3. O uso da língua funciona de modo complexo e regular e nenhum dos exemplos é mais complexo do que o outro, são apenas diferentes. A ideia de que uma determinada variedade idiomática seja melhor do que outra é milenar e advém da identificação da língua oral à língua escrita, com privilégio para a segunda. Esse fenômeno tem a ver com uso da escrita para o registro de textos sagrados e legais, ou seja, diz respeito ao valor simbólico dos discursos religiosos, políticos e jurídicos, cujos efeitos se impregnaram na língua escrita.
No entanto, em todas as épocas e em todos os lugares “uma língua” sempre funciona, na realidade, como “várias línguas”. No nosso caso brasileiro, por exemplo, e de modo muito simplificado, o português que nos chegou foi resultado da variação diacrônica do galego que também passa pelo espanhol, em um complexo de variedades cujas origens e estabilidades não cabem nesta discussão. Aqui já estavam os povos indígenas e, durante séculos, foram faladas em nosso território as chamadas línguas gerais: misturas de várias línguas indígenas e de variedades do português de Portugal. Depois vieram os escravos e migrantes, e a língua portuguesa do Brasil nunca foi e nunca será a de Portugal (aliás, é a língua portuguesa de Portugal que tem ficado mais “brasileira” pela influência da mídia...).
Até bem pouco tempo, insistia-se na colocação pronominal portuguesa em detrimento da brasileira. Hoje em dia, basta assistir televisão para ver que nem mesmo no Jornal Nacional isso permanece como regra. Seus repórteres dizem cotidianamente “Me contaram”, “Nos informaram”, “O prenderam” e ninguém, absolutamente ninguém, escreve cartas ou artigos sobre a recorrência dos “erros de colocação pronominal” na mídia.
Um “erro grave” é sempre o “erro do outro”. Em Goiânia, se escuta “nós vai” com tanta frequência como se ouvirá, em Porto Alegre, “tu fez”. Mas não se escreve assim nos jornais de ambas as cidades (ainda que se fale assim nas rádios, eventualmente). Isso é um fato. Outra coisa, bem diferente, é o modo como a escola deve tratar a relação entre a língua escrita e a língua falada no processo de aprendizagem da comunicação pública e, sobretudo, no estudo da ciência e da cultura.
A modalidade oral é anterior na nossa formação social. Aprendemos a falar interagindo com a família e com o mundo ao redor. Aprendemos a falar agindo, e nenhum pai, em sã consciência, fica corrigindo os “erros” de português de seu filho nos seus primeiros anos. Haverá, claro, aquele que passará a fazê-lo mais tarde, sem perceber que comete os mesmos erros de vez em quando. Corrigir o português do outro é uma perversidade atávica que todos herdamos de nossa origem colonial: há um prazer maldoso em subjugar a fala do outro. Bastaria que os pais falassem do modo que julgam correto e que fossem amados e admirados por seus filhos para que fossem imitados por eles. (Mas disso não se quer falar;  voltemos à escola e aos livros).
No processo de formação escolar, os estudantes têm de conhecer e aprender a usar a língua padrão escrita para ter acesso aos já citados discursos privilegiados da cultura, da religião e da ciência: ponto. Isso já está posto em nossos currículos desde a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, cuja formulação envolveu estudiosos de todos os cantos do país e já está por aí há mais de uma década. Mas a correção gramatical não é o primeiro nem o mais importante fator para a aprendizagem da língua padrão. Antes de aprenderemos a “não errar” precisamos aprender a “acertar”.
Os estudantes necessitam de motivos para estudar. O acesso à leitura e à escrita deve dar-se em atividades significativas cujo valor os leve gradualmente ao mundo adulto e público. Nenhum adolescente vai interessar-se por um texto machadiano se nunca refletiu sobre si mesmo; nenhum estudante vai gostar de ler Grande sertão: veredas, se não refletiu sobre a beleza da variação linguística. Além disso, para aprender a ler e a escrever é preciso aprender a falar e a escutar. Mas não “corretamente” apenas: é preciso aprender a falar, escutar, ler e escrever “atentamente”, sobretudo (Mas isso purismo oportunista não quer discutir...).
A correção gramatical só é relevante quando vem por último: primeiro, é preciso falar muito, escutar muito, ler muito e escrever muito; depois, é preciso refletir sobre os modos e os sentidos de toda essa atividade linguística, e suas possibilidades de expressão; e só mais tarde haverá razão para “dar nomes aos bois” e usar a metalinguagem gramatical como ferramenta para a aprendizagem da língua padrão. Sim, a aprendizagem gramatical é importante. Aliás, seu valor é mais relativo à lógica e à estrutura da linguagem e do conhecimento do que à mera “correção linguística”. Ninguém precisa estudar gramática para aprender a falar ou a escrever corretamente: basta ouvir e ler e consultar os dicionários – e decorar... É isso que a maioria dos “campeões da correção linguística” faz: decoram. Apesar de honrosas exceções, de fato, não sabem gramática nem como tradição nem como ciência. Suas apostilas, na maioria dos casos, são cópias de boas gramáticas tradicionais (e quem duvide disso, faça-me o favor de cotejar...).
Enfim, aceitar que se fale ou que se escreva com “erros” – ou melhor, com padrões de concordância da fala, neste caso – não significa que se deva deixar de, em algum momento, e de modo produtivo e adequado, ensinar a variedade padrão escrita e a oralidade letrada padrão. Aprender a usar a língua e a conhecer o mundo da cultura que nela se encontra e se constitui é algo muito mais complexo do que questões de ortografia ou concordância. E isso é fácil demais de aprender quando vale a pena estudar geografia, história, biologia, química, física, literatura, cinema etc.
A “grande polêmica” sobre o tal “incentivo ao erro de português” aprovado pelo MEC só impressiona a quem não conhece os verdadeiros problemas da educação brasileira. Os mais ferozes e vorazes debatedores, via de regra, nunca pisaram numa escola pública de periferia. Mais do que desinformado, esse debate é hipócrita.
A linguagem é a peça-chave do processo educativo e envolve questões, problemas e métodos absurdamente mais complexos do que esse tipo de debate enseja. Nesta segunda-feira, vá à escola do seu filho (pública ou privada) e pergunte aos professores, coordenadores e diretores sobre o planejamento interdisciplinar e transversal da escola. Se a disciplina de língua portuguesa não estiver no centro dessas atividades, caso elas existirem, é sinal de que seu dinheiro está sendo mal aplicado, ou pior: significa que seu filho está perdendo os melhores anos de sua vida com atividades burocráticas e emburrecedoras. Agora, se você já é adulto e quer aprender gramática, compre uma e estude. Depois tente matricular-se num cursinho e veja quantas aula suporta.
Não há nada, enfim, a criticar na obra aprovada pelo MEC, pelo menos com relação às críticas feitas. Se existe algum problema a ser debatido é o fato de alguns formadores de opinião divulgarem e promoverem a desinformação.

(*) O autor é professor adjunto da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás. Doutor em Linguística Aplicada pela Unicamp, trabalha com as disciplinas de estágio e de letramento na formação de professores de português.