segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Breve histórico do Ginásio Nossa Senhora de Fátima, em Monte Alegre do Piauí



Ao tomar posse como pároco da paróquia de Nossa Senhora de Fátima, em Monte Alegre do Piauí, no ano de 1967, o padre Raimundo Dias Negreiros residiu em Gilbués atendendo a uma determinação do bispo diocesano de Bom Jesus, d. José Vasquez. A determinação tinha por objetivo reforçar o corpo docente do Ginásio Divina Pastora com o aproveitamento do padre Raimundo para ministrar as disciplinas Língua Portuguesa e Inglês.

A comunidade mariana montealegrense continuava, até então, em segundo plano, considerando que o seu pároco continuava a morar em Gilbués, como os seus antecessores, vindo apenas celebrar aos sábados à noite e domingos pela manhã. Algumas lideranças, religiosas e da comunidade, resolveram conversar com o padre sobre a situação. Na reunião, realizada pós-missa de sábado, ele falou aos presentes que gostaria de vir morar em Monte Alegre, porém, precisava de um lugar. As lideranças prometeram que, o mais breve possível, ele teria morada na cidade. No outro final de semana, em nova reunião, as lideranças informaram ao padre que a casa seria adquirida pela prefeitura municipal e repassada à paróquia, conforme acerto com o prefeito municipal João (do Ouro) Rodrigues de Carvalho. A casa seria mobiliada com doações da comunidade. Em pouco mais de um mês a residência foi adquirida, mobiliada e a despensa abarrotada de mantimentos diversos. Entretanto, d. José, ao tomar conhecimento, deu ordens para que o padre Raimundo continuasse dando aulas no GDP – o que o levaria a ficar ausente toda a semana.

De comum acordo com padre Getúlio de Alencar, então diretor do GDP, o padre Raimundo conseguiu mexer na grade horária, permitindo que suas aulas fossem somente de segunda a quarta-feira, propiciando sua residência em Monte Alegre de quarta-feira à tarde até segunda-feira cedo, quando dava carona em seu jipe para rapazes e moças que estudavam em Gilbués.

As reuniões aos domingos com os jovens na igreja matriz, foram preponderantes para amadurecer a ideia de criar um ginásio em Monte Alegre, permitindo oportunizar aos jovens a continuidade dos estudos interrompidos após a conclusão 5º ano primário.

Assim, “ no peito e na raça” e contando com o apoio das professoras Daysa Alencar Guerra, Maria dos Humildes Aguiar, Isabel Maria de Jesus, Neide Nogueira e lideranças de outros segmentos, o padre empreendeu viagens para Brasília, Fortaleza e Teresina com o objetivo de registrar a Obra Social Nossa Senhora de Fátima, que era o instrumento de sustentação para receber verbas públicas e subvenções diversas. Com a legitimação da obra social, pode-se criar o estabelecimento de ensino auspiciado por Nossa Senhora de Fátima.

Em 1968, primeiro ano de funcionamento, 52 alunos ingressaram na 1ª Série do Ginasial, após aprovação no Exame de Admissão. Formavam o corpo docente os seguintes mestres: Padre Raimundo (Português e Inglês); Daysa Guerra (Secretaria e História); Maria dos Humildes (Ciências); Isabel de Jesus (Geografia) e Neide Nogueira (Matemática). O estabelecimento de ensino funcionou durante o primeiro ano na casa que viria a ser do casal Mundico e Naísa Mascarenhas, no período vespertino. No período matutino, no mesmo local, funcionou o 5º Ano Primário, anexo ao Ginásio, embrião da Unidade Escolar Manoel Bandeira. 

No ano seguinte, as duas salas do primeiro andar do prédio da então prefeitura municipal, hoje Câmara de Vereadores, foram ocupadas no período vespertino pelas 1ª e 2ª Series do Ginasial, e o 5º Ano Anexo no período matutino, já contando com outros professores vindos de fora, como Rita Pereira.

No ano de 1970, as salas da casa paroquial foram demolidas para no espaço receber a 3ª Série, continuando as 1ª e 2ª séries no primeiro andar da prefeitura. Erotides Caetano assumia a cadeira de Matemática. Enquanto isso a construção do prédio do Ginásio caminhava a passos largos para alojar as quatro séries, a secretaria, a diretoria e a sala onde era preparada a merenda. Assim, foi possível que a turma pioneira de formandos também estudasse no novo prédio.

Em 21 de abril de 1972, foi empossada a primeira diretoria do Grêmio Ginasial Tiradentes, composta por Neuton Nogueira, presidente; Evancy Fernandes, secretária; e Jorge Luiz A. Guerra, orador.

Com a estadualização e municipalização dos estabelecimentos educacionais o GNSF, estabelecimento de ensino particular, perdeu a razão de existir na sua concepção original e foi municipalizado preservando suas cores, seu hino e sua tradição.

O Ginásio Nossa Senhora de Fátima oportunizou o crescimento cultural e a formação humana alicerçada em valores éticos e morais a muitos jovens montealegrenses.

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Centenário de Nascimento de BELIZÁRIO DE ÁVILA FERREIRA 8 de outubro de 1925 – baiano de nascimento e piauiense de coração.


Bahia

Em outubro de 1925, diferente dos anos anteriores, o Rio São Francisco, considerando as chuvas ocorridas no final de setembro nas Minas Gerais, apresentava um volume expressivo de água. O movimento das embarcações com cargas e passageiros no cais de Xique-Xique demostrava a importância comercial da cidade para a margem direita do médio São Francisco, bem como para as cidades do sopé Norte da Chapada Diamantina.

Na tarde quente do dia 8, a jovem modista de 16 anos, Belaura Miranda, já em trabalho de parto, contava os minutos para o nascimento do primogênito, fruto do seu casamento com José de Ávila Ferreira, rapaz de múltiplas aptidões. Antes do cair da noite, nasceu um menino grande e rosado, com traços da família materna. Um legitimo bodeiro, como eram conhecidos os Miranda de Oliveira. Deram-lhe o nome de Belizário, com o sobrenome “de Ávila Ferreira” mantendo a tradição familiar de nomear os primogênitos de cada descendente do imigrante português, José de Ávila Ferreira, trisavô do recém-nascido.

A família cresceu com o nascimento de mais seis filhos do casal (Maria, Guilherme, Braz, Angélica, João e Antônia). Não tardou para que Zé de Ávila mudasse da cidade de Xique-Xique, levando toda a família, para Santo Inácio, distrito de Gentio do Ouro, potencialmente rico na exploração de diamante. A população flutuante no garimpo, a precariedade e ausência de profissional fixo da Saúde naquele distrito, os conflitos e as mazelas humanas, despertaram a curiosidade e o interesse de Zé de Ávila pelas Ciências Médicas. Com bom senso e de posse de um Dicionário de Medicina Popular, do doutor Chernoviz – presente de um cirurgião judeu que estivera por um tempo nos garimpos da Chapada – passou a cuidar das enfermidades mais endêmicas da microrregião diamantífera.

Estudioso e com grande senso de responsabilidade, impôs aos filhos a importância da educação por um futuro melhor. A viuvez prematura o fez desdobrar-se no zelo com a família. Enquanto se dedicava em cuidar da saúde daqueles acometidos por males diversos, via os filhos se interessar pelas atividades do garimpo. Atividades estas que iam do corte do cascalho à comercialização dos produtos.

Aos poucos a produção diamantífera na região foi reduzida e já não era interessante os custos com a atividade garimpeira. O cascalho estava cada vez mais profundo. Poucos e obstinados garimpeiros, que dependiam exclusivamente do garimpo como forma de subsistência, penavam carregando sacos de cascalho retirados dos depósitos de sedimentos deixados pelo fluxo de água nas escarpas das serras e levando-os até o leito dos riachos para a bateção e a lavagem.

À noite, na praça principal de Santo Inácio, era comum, nas rodas de conversas entre moradores, a propagação de novidades. E foi numa noite desta que Zé de Ávila ficou sabendo da descoberta de um novo garimpo de diamantes na região sul do Piauí. Um grupo de garimpeiros, na maioria solteiros, fazia planos para empreender viagem já na semana vindoura. O trajeto, impreterivelmente, teria a cidade da Barra como ponto de referência. De lá deveriam entrar no Piauí passando por Santa Rita de Cássia e adentrando as catingas rumo a Parnaguá. Para os pioneiros do trajeto as dificuldades seriam vencidas com informações dos moradores e, assim, chegariam até o município de Gilbués, onde a exploração do diamante já era uma realidade.

No dia seguinte durante o almoço da família, Zé de Ávila quis saber a opinião dos filhos Belizário, Guilherme e Braz quanto ao interesse de conhecerem o recém-descoberto garimpo no Piauí, considerando o momento nada promissor da garimpagem em Santo Inácio e região. Pediu, também, a opinião de Maria, já casada, sobre o período em que ficariam ausentes e ela assumiria o comando dos irmãos mais novos, Angélica, João e Antônia. O assunto não era uma decisão, mas uma troca de opiniões. A partir de então, a ideia foi sendo encorpada e as conversas mais amiudadas sobre a questão.  

A Saga

            As notícias chegadas do Piauí eram animadoras. Cartas recebidas por parentes daqueles que já se aventuraram no novo garimpo diziam das dificuldades encontradas na viagem, mas também do quão promissor parecia ser o novo garimpo. O espírito bandeirante do garimpeiro falou mais alto. Zé de Ávila deu início aos preparativos para a jornada, que incialmente tinha mais o aspecto de exploração e conhecimento do que de uma mudança definitiva. Seu cunhado Manoel de Oliveira, mais conhecido nos garimpos como Mané Bodeiro, ficou entusiasmado com a possibilidade de se juntar ao cunhado e aos sobrinhos na empreitada. Entretanto, por uns compromissos assumidos em Gentio de Ouro, não pode se juntar ao grupo. Pediu ao cunhado que tão logo chegasse no Piauí, aproveitasse a viagem de algum tropeiro vindo para a cidade da Barra e mandasse carta com as impressões sobre o novo garimpo.

            Os preparativos para a viagem passavam por provisões básicas como manta de carne seca, ossada de carne seca, tapioca, farinha, rapadura e feijão de arranca muito popular nos garimpos baianos. As economias reservadas há anos eram fundamentais para a jornada e o estabelecimento, se fosse o caso, no novo garimpo.

            O percurso entre Santo Inácio e a cidade da Barra era por demais conhecido pelos viajantes. Durante o trajeto, em casa de amigos, explicavam a melhor forma encontrada para fazer a travessia da Barra até a região do novo garimpo. Na localidade Lago D’água, de propriedade da família Justiniano de Sousa, fizeram uma parada para um almoço oferecido pelo pai de Odesino (Dedé Saudoso). A conversa despertou o interesse de Dedé em seguir com a família de Zé de Ávila, mas de forma temperante o patriarca dos Justiniano fez ponderações que adiaram temporariamente mais um êxodo para o desconhecido sul do Piauí.

            Aproveitando o clarão da Lua saíram da cidade da Barra subindo o Rio Grande pela margem esquerda. Caminharam com as matulas e os sacos de roupa amarrados as costas, parando apenas para beber água nas veredas e riachos. O Sol se punha quando as vistas alcançaram umas casas. Tomaram chegada em uma delas, a maior, e cumprimentaram o morador que estava sentado à porta. Explicaram sobre a viagem e perguntaram se era possível arranchar por ali. O morador indicou uma área aberta vizinha da casa para colocarem as coisas. Indicou o rio, aproximadamente a 500 metros, para um banho dos viajantes. Depois do banho, comeram rapadura com farinha e carne seca. Extenuados os irmãos Guilherme e Braz adormeceram logo. Belizário acompanhou o pai, a convite do morador, para um cafezinho e uma prosa. A conversa durou até Zé de Ávila dizer que precisava descansar para enfrentar a jornada do dia seguinte. Antes, porém perguntou:

- Como é o nome deste lugar e qual a distância para a cidade da Barra?

- Aqui é Santo Antônio. Fica, aproximadamente, a oito léguas e meia da cidade, respondeu o morador.

O sol ainda não estava no céu quando retomaram a caminhada. O objetivo era chegar ao encontro dos rios Grande e Preto. Mais uma vez, o objetivo traçado foi cumprido. Ao final do dia, arrancharam ao lado da Cerca de Pedras, na região do Pontal, divisa dos municípios de Barra e Mansidão.

No quinto dia estavam em Santa Rita de Cássia. Encontraram ali conhecidos que retornavam do garimpo de Gilbués para buscar familiares na Bahia e davam informações positivas acerca da exploração diamantífera no novo garimpo. Já era uma realidade. Aproveitaram o dia para descansar e para fazer compras de mantimentos.  Em um dos sacos com mantimentos que era carregado por Guilherme, algo chamou a atenção de Zé de Ávila. As rapaduras serentas que haviam sido colocadas no saco junto à farinha começaram a derreter formando uma capa na rapadura. Então, Zé de Ávila, de forma artesanal começou a retirar pedacinhos das capas das rapaduras e dar-lhes formas de pequenas pílulas, colocando-as para secar e endurecer. Doravante, até chegar ao destino, quando se deparava com alguém acometido por gripe e dor de cabeça, indicava o uso das pílulas pela manhã e à noite. O certo é que a fé cura, pois suas pílulas fizeram sucesso por onde passou.

Orientados por moradores da cidade de Santa Rita de Cássia o roteiro, apesar de um poco mais longe, deveria ser pela região conhecida como Golfos e daí até a cidade de Parnaguá. A viagem, considerando o cansaço, já não rendia como no início. Trechos que poderiam ser vencidos em dois dias só eram completados em três dias. Mesmo assim não havia espaço para desmotivação. No penúltimo dia da viagem pernoitaram na localidade Enseada. Saíram ao amanhecer e no meio da tarde chegaram a Gilbués. Logo encontraram conterrâneos que se apressaram em indicar o melhor local para improvisar um rancho. À noite, depois de um banho de brejo mais que necessário, saíram na companhia de outros garimpeiros, já moradores, para conhecer a cidade e visitar conterrâneos. Na oportunidade ficaram sabendo que novas e promissoras minas foram recém-descobertas nas grotas de aluvião perto da cidade.

O Garimpo

A notícia da descoberta de veios de cascalho propagou-se com um fogo em campo seco. A cidade de Gilbués recebia um número expressivo de garimpeiros e aventureiros todos os dias vindos do próprio Estado, de Pernambuco, do Maranhão e, principalmente, da Bahia. A população da cidade cresceu e incomodou aos gentios. Uma ordem foi baixada pelo Município proibindo a construção de tendas, abrigos e casas improvisadas. Em resposta, a massa de garimpeiros arribou com seus pertences para instalar-se nas margens das grotas de aluvião. Os ranchos de palha e lona foram construídos acompanhando os veios das grotas. Em pouco tempo, a comunidade já contava com número de moradores superior ao da sede do município. Os primeiros moradores instalados no garimpo deram-lhe o nome de Monte Alegre, em referência a irregularidade do terreno e à alegria contagiante de quem bamburrava. E todos estavam bamburrando fosse no garimpo, nas biroscas, nas feiras improvisadas. Como em Santo Inácio, na Bahia, que tem o Morro do Cruzeiro, denominaram a rua de entrada da comunidade como Rua do Cruzeiro.

O orgulho de ser parte do nascimento e crescimento de uma comunidade era característico dos moradores. As construções definitivas apareciam numa velocidade impressionante. As olarias não tinham condições de atender à demanda. Fabricantes de adobe cavavam barreiros e enformavam tijolos. Pessoas com experiência na construção de paredes de enchimentos deixavam de atender às empreitas pelo expressivo número de interessados. Os assentamentos se multiplicavam e se estendiam em novas povoações como Serrinha e Cachoeira. Os estabelecimentos comerciais, precariamente instalados, fervilhavam e indicavam a necessidade de diversificação do ramo comercial.

Os filhos de Zé de Ávila, orientados por ele, faziam parte da massa de garimpeiros que todos os dias desciam as grotas em busca de cascalho. Cada um à sua maneira procurava fazer no garimpo o melhor. Belizário, economizava mais que o necessário. Dispensava as noitadas regadas a aguardente e vermutes. Logo, com as economias do seu trabalho no garimpo, resolveu colocar por conta uma dupla de garimpeiros, prática que manteve por longos anos e assim teve mais tempo para dedicar-se a outras atividades do comércio.

Nos fins de semana que se seguiram, após pagar o labor da dupla e fazer a feira para a próxima semana, separava a produção em lotes e saia à procura de compradores para os lotes de menor qualidade, guardando as melhores pedras no piquá para eventuais necessidades pessoais e da família. Rapidamente, destacou-se entre seus pares pela polidez e maneiras na convivência diária. Apesar da pouca idade, em pouco tempo tornou-se referência para os migrantes baianos.

O surgimento dos garimpos de Boqueirão e de São Dimas aumentou a migração de outras estados para o município de Gilbués, fortalecendo a necessidade da participação mais efetiva dos migrantes na política. Era importante criar novas relações com lideranças do Estado e ao mesmo tempo se contrapor aos caciques da política local. A baianada aderiu em massa à UDN, uma vez que o PSD era historicamente dominante na política local.

De comum acordo com Belizário, Zé de Ávila, retorna a Santo Inácio com o objetivo de buscar os três filhos menores que estavam sob os cuidados de Maria. Desta vez, faz a viagem pela estrada de rodagem que ligava Corrente a Barreiras. O novo trajeto tinha também o objetivo de rever o amigo Martiniano, radicado em Formosa do Rio Preto, proprietário de uma hospedaria e, também, de comércio de secos e molhados. De Formosa do Rio Preto desceu de balsa o rio até Santa Rita de Cássia. Ao chegar à cidade da Barra escreve a Belizário dando notícias, informando de providências, além de recomendar tratamento distinto a Martiniano, em caso da ida deste ao garimpo. Infelizmente, esta foi a última carta de Zé de Ávila que faleceu logo depois sem retornar ao garimpo.

Na eleição municipal de 1950, em Gilbués, duas chapas concorrem aos cargos de prefeito, vice e vereador. Em maior número de candidatos a vereadores a chapa da UDN, formada na grande maioria por migrantes que se radicaram nos povoados de Monte Alegre e Boqueirão, sagrou-se vencedora demonstrando a unidade do povo dos garimpos.

Belizário entrava de vez na política como liderança de um segmento até então marginalizado. O papel da vereança naqueles idos se limitava a ter acesso ao prefeito e às lideranças políticas do Estado. Participou efetivamente, junto com outros baianos residentes no garimpo do Boqueirão, da criação da Loja Maçônica de Gilbués sendo admitido como membro da Maçonaria.

A criação de Monte Alegre – ainda não emancipado – deveu-se em muito a participação de vereadores do quadriênio 1950-1954, da Câmara Municipal de Gilbués. Reuniões eram organizadas em Monte Alegre tendo como objetivo viabilizar a emancipação do município, considerando seu potencial e sua arrecadação de impostos para os cofres públicos. Houve, desde as primeiras tentativas de discutir o assunto na Câmara Municipal uma forte rejeição à proposta, haja vista que em caso de concretização da mesma, a perda de arrecadação seria substantiva. Mas, por mais absurdo que pareça, o assunto era simpático a lideranças políticas tradicionais de Gilbués que vislumbravam mais possibilidades para se manterem na política do novo município.

No pleito seguinte, em 1954, o governo estadual, do PSD, investiu pesado na política de Gilbués e foi majoritário na eleição de seus candidatos. Há que se considerar a não participação das neolideranças do recém-criado Monte Alegre do Piauí, já em processo de emancipação. Por este tempo, Belizário, durante o casamento de Ecy (Dó) Guerra com Socorro Corado, começou a crescer os olhos para sua futura esposa, Milce Lemos Rosal. Não foi feliz nas primeiras investidas, mas longe de desistir procurava chamar a atenção da moça. Em viagens a Corrente, onde a moça estudava, procurava cortejá-la. Era comum naqueles tempos a eleição de rainhas e princesas das escolas. Os votos eram contabilizados pelo valor da doação. Ganhava quem conseguia a maior arrecadação em moeda corrente. Como seus tios Dó e Ady residiam em Gilbués e Monte Alegre, respectivamente, ela e outras colegas aproveitaram para visitar as localidades. Em Monte Alegre, ao desembarcarem na rua Baiana sob tiros de canhão Adrianino, muito comum nos garimpos para anunciar uma novidade, Belizário abriu o Livro de Ouro e fez uma contribuição cujo valor não foi ultrapassado por outro valor durante o concurso. A partir deste dia Milce começou a pensar na possibilidade de namoro.

A emancipação municipal ocorreu com a nomeação de Herculano Andrade Negrão, seu Dunda, ao cargo de prefeito municipal de Monte Alegre do Piauí, pelo então prefeito de Gilbués, Dr. Álvaro Melo, para um mandato de seis meses. Após o mandato tampão de Herculano, há um vácuo na documentação eleitoral e a possibilidade mais plausível é que o novo prefeito do município, o seu vice e os vereadores tenham sido eleitos de forma indireta, com a participação e sob forte influência do prefeito de Gilbués, Álvaro Melo, do PSD, e do seu vice, Antônio da Cunha Lustosa. Assim, para o mandato de 1956-1958, tomam posse em meados de dezembro de 1955, Elias Torres Guimarães, do PSD, como prefeito municipal e seu vice-prefeito, Belizário de Ávila Ferreira, da UDN. A Câmara Municipal era composta por cinco vereadores, três do PSD, e dois da UDN, com Belizário acumulando os cargos de vice prefeito e vereador.

Em dezembro de 1955, ao retornar de Corrente para as férias de final de ano, Milce resolve ficar uns dias na casa de Ady e Daysa – recém-chegada de Remanso. Uma noite Belizário chegou e em conversa com Ady manifestou o interesse em casar-se com Milce. Ele era um bom partido em um lugarejo onde os rapazes viviam na boemia e na esbórnia, modo de vida peculiar as comunidades garimpeiras. Ady chamou Milce e perguntou o que achava do interesse de Belizário em contrair núpcias com ela. Disse apenas que era, também, de seu gosto. Ady disse a Belizário que na ausência de Eunice, viúva mãe da moça, consentia com o noivado e o casamento. Assim, no outro dia, Ady e Belizário foram ao Cartório de Gilbués para dar entrada nos papéis dos noivos. Dez dias depois, tempo suficiente para a prendada noiva preparar o enxoval, foram casar-se em Gilbués, acompanhados de alguns amigos do noivo e da família da noiva. O casamento foi realizado na residência de Helena Lustosa e Mundico Corado. Registro a informação de Daysa Guerra, do quanto elegante, em um terno de linho branco, estava o noivo. Já em outubro de 1956, nasce o primogênito, José Milton (in memoriam).

Aplica as economias feitas no garimpo em uma extensa área de terra, composta de chapada e baixões, denominada Saquinho, própria à criação de gado, e em outra pequena área no município de Gilbués, Bom Jardim. Visitava esporadicamente estas propriedades, mas sua atenção estava mais dirigida à Fazenda Saquinho. 

Na primeira eleição municipal com a participação do eleitorado montealegrense, em 1958, Belizário tem a maior votação entre os candidatos a vereador pelos partidos PSD e UDN. Usa o mandato com temperança e faz o papel de interlocutor entre seus pares e o prefeito. Evita embates e conquista simpatia de adversários. O prefeito eleito, com o tempo, passa a não ser acessível o quanto todos esperavam dele. A oposição cresce e começa um movimento de apelo popular com ênfase na valorização de um candidato filho da terra. Então em uma jogada de mestre, Amando Gomes, prefeito e liderança da UDN, para assegurar que faria seu sucessor e considerando o crescimento pessoal e político de Belizário, lança-o como seu candidato à sucessão. Ao fazer isso, ele pavimentou apoio das famílias Guerra e Martins, dominadoras da política da região de Paus e propriedades dos Guerra, tios e mãe da esposa de candidato lançado. Para assegurar o apoio dos Martins, sugere o nome de Lulu Martins candidato a vice-prefeito.

A eleição de 1962, em Monte Alegre do Piauí, com um eleitorado menor que o de 1958, em função das primeiras migrações para Brasília, foi uma eleição tranquila e Belizário foi eleito prefeito municipal. Ao assumir o mandato o casal Belizário e Milce já tinha outros dois meninos, Carlos Alberto (in memoriam) e Roberthson Elmy, o Berão.  Naquele tempo as prefeituras recebiam parcas verbas que mal cobriam os custos da administração. O garimpo já não era uma fonte de arrecadação confiável. Para realizar melhorias nas estradas municipais, todas carroçáveis, e construir pontes rústicas de madeira, era necessário ir à capital “de pires na mão” e contar com a boa vontade de um deputado para fazer a intermediação. Mesmo assim, Belizário construiu o novo e central Mercado Municipal e a Cadeia Pública. No meio do mandato ocorre a Revolução Militar que limitou as movimentações políticas com a cassação de parlamentares estaduais e federais, dificultando a captação de recursos para novos empreendimentos. Despede-se da política municipal fazendo o seu sucessor nas eleições gerais de 1966.

Ao finalizar o mandato em 1966, agora com a família crescida com o nascimento de Belizário Jr. e Belaura Eunice, vê o município a cada dia mais minguado com o êxodo maciço de seus habitantes das zonas rural e urbana para o planalto central. Vê como iminente uma nova mudança, recorda-se do pai e dos seus ensinamentos de que o homem deve procurar melhoras enquanto há tempo. Sabe que a mudança não será fácil. Terá que deixar de lado o conforto da casa espaçosa, deixar os irmãos e enfrentar outra realidade. Mas precisava tentar. Não iria de mãos abanando, este propósito ele tinha!

Brasília – Novos desafios

 Vendeu alguns bens móveis e imóveis e investiu naquilo que lhe parecia mais lógico e possível pelo conhecimento adquirido, o comércio de tecidos e afins. Comprou o ponto, uma esquina na comercial da Quadra 8, formou estoque e passou o comando a sua cunhada Milde, que ficaria por aqui para tocar o negócio enquanto ele voltaria ao Piauí e aguardaria notícias do empreendimento. Como as notícias recebidas eram animadoras, em meados de 1967 ele veio para ficar, deixando Milce e os meninos em Monte Alegre. Assim que colocasse as coisas no rumo mandaria buscar todos. No início de 1968, aproveitando que seu cunhado Celso iria ao Piauí, aproveitou para encarrega-lo de trazer Milce & Cia., uma vez que, tinha certeza, não era uma tarefa fácil e nem para qualquer pessoa. A viagem foi longa e difícil. Atoleiros, chuvas torrenciais, trechos em jipes e outros em ônibus (sem um mínimo de conforto), mas todos acreditando que seria o melhor.

Ao chegar em Brasília, a família foi acomodada em um barraco de madeira, na Quadra 9, moradia típica de Brasília até a década de 1970. Era um mundo novo e diferente a desbravar. Belizário já havia desistido do comércio de tecidos e abrira no mesmo ponto da loja o famoso e tradicional Bar Ávila, ponto de encontro aos sábados e domingos dos migrantes do garimpo de Monte Alegre do Piaui. O assunto era a cidade e os amigos que ficaram por lá. Poucos anos depois, a família mudou-se para o barracão de tijolos no Conjunto G da Quadra 10. Por este tempo, nasce o caçula, Paulo Sobrinho. A casa de Belizário e Milce parecia não ter portas. Além de acolher pessoas da família que buscavam tratamento de saúde em Brasília era como se fosse um albergue sempre disponível a acolher alguém, a ajudar a quem chegava em Brasília precisando de orientação e acompanhamento. Era comum aos domingos, no almoço, servir arroz, feijão, macarrão e três capões adquiridos na feira da Quadra 8. A mesa era apenas para cada um fazer seu prato. De prato feito, cada um procurava um lugar para sentar-se. E todos comiam bem!

No final de 1971, dois fatores contribuíram para Belizário dar uma guinada nos negócios. A despesa com a casa e a disponibilidade de um tipo de mão-de-obra necessária de ocupação: os garimpeiros migrantes de Monte Alegre do Piauí. Primeiro, avisou a Oséias, fiel amigo desde os tempos da Bahia, que ele seria o responsável pelo funcionamento do bar se um pensamento que ele estava colocando em prática vingasse. Em breve ele criou a Motege (Movimentos de Terra em Geral) em sociedade com seu amigo Sunito (Davi Soares). Assim, alavancou sua renda e ocupou a mão-de-obra disponível. Um dos primeiros e marcantes trabalhos da Motege foi a escavação dos tubulões para os alicerces do Ginásio Esportivo Presidente Médici (hoje, Nilson Nelson). Diversos edifícios do Setor Bancário Norte tiveram seus tubulões de fundação escavados pela Motege, assim como as valas para passagens de cabos do Aeroporto de Brasília. A firma foi extinta assim que Belizário completou o tempo de contribuição para o INSS.

Em 1978/79, depois da morte do filho Carlos Alberto, retorna ao Piauí e utilizando os recursos naturais da Fazenda Saquinho, com mecanização básica, dá início a fabricação de um tipo de telha até então desconhecido na região. De coloração esbranquiçada, com uma calha mais larga e longa o produto tem ótima aceitação no meio. Entretanto, a produção é obrigada a diminuir por falta de construções novas na cidade e a dificuldade logística de fazer chegar a outras praças. Enquanto via o negócio minguar, recebe uma proposta irrecusável pelas terras da Fazenda Saquinho. Demora a acreditar que seja real. O comprador era sério e queria uma resposta logo. Fechou negócio e, outra vez, retorna a Brasília.

Passa a dedicar o seu tempo à construção da nova residência da família, uma casa ampla, arejada, confortável e de portas largas, como não poderia deixar de ser. Pronta, era a casa de todos que ali chegavam. Ele era incapaz de demonstrar cansaço ou irritação com o burburinho da casa. Conversas que varavam a noite, regadas a bebidas e música. Ele estava presente até quando tivesse interesse no assunto. Se não havia interesse, saía de fininho e se recolhia em seu quarto. Estava sempre de bem com a vida e a vida com ele.

Nasce a primeira neta, Belisa, filha de Belizário Jr., que o faz permitir tudo que ela quisesse fazer. Com os filhos de José Milton, não foi diferente, e ele passava seus fins de semana na casa do filho paparicando as crianças. Finalmente, chegam os outros netos, filhos de Roberthson e de Belaura. Conviveu com todos os sete netos. Os bisnetos, ele não teve a graça de conhecer.    

Seu filho Berão, convence-o a voltar a trabalhar com o comércio e lhe propõe uma sociedade. Abrem uma loja de ferramentas profissionais e equipamentos industriais. O negócio evolui e possibilita uma ampliação. Entretanto, a sociedade sofre um revés por ações que fogem ao controle dos sócios. Imediatamente, resolvem liquidar o estoque, vender o ponto e investir no Piauí, em outro ramo completamente diferente. Na Fazenda Estreito, com mais um sócio, implantam um sistema de confinamento de bovinos para abate. Recuperam pastos, plantam cana-de-açúcar, instalam alambique e adquirem novas áreas no vale do Paraim. Belizário estava completamente integrado à vida rural. Vinha em Brasília esporadicamente. Preferia a paz, o sossego e a tranquilidade de poder dormir ao anoitecer e acordar ainda escuro para tomar uma caneca de leite diretamente do peito da vaca, um gole de café e uns tragos do cigarro partido ao meio como ele gostava. Infelizmente, acometido de privações intestinais teve que voltar a Brasília na busca do restabelecimento da saúde. Aos poucos, dias antes de completar seus 80 anos, em 25 de setembro de 2005, Belizário, seu Bili, Zalo, pai Zau (como eu o chamava), nos deixou.

Era um sujeito de boa prosa e de hábitos simples. Uma vez, perguntei se ele não tinha vontade de viajar até Santo Inácio para matar a saudade. Ele me respondeu com um caso simbólico. Lembrou que havia um lugar próximo a Santo Inácio que era extremamente seco. Muito seco. No período chuvoso apresentava a melhor produção de melancias, este lugar era conhecido como Lago D’água, E arrematava cutucando o meu braço:

- Um lago que não tinha água. Mas se você for comigo, podemos marcar a viagem. Não marcamos. Não fomos e ele não retornou a Santo Inácio.

Hoje, 100 anos de nascimento de Belizário de Ávila Ferreira e primeiro ano de vida do seu bisneto mais novo, João Gabriel, filho da sua primeira neta, como se a vida, em sua infinita sabedoria tivesse escolhido esta data para reafirmar que a vida e o legado de Belizário não se encerram com o tempo, mas renascem em cada nova geração.

Assim, nesta data, duplamente significativa, celebramos a lembrança de quem partiu e, também, a esperança que se renova com outra vida.

Jorge Luiz Alencar Guerra

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

APITO DE CACHORRO

Fernando Tolentino(*)

A vocação para o terrorismo é sem dúvida algo incontrolável.

Ainda no período do último ditador do regime militar, o Brasil aproximava-se de uma abertura política, que deixaria para trás anos de prisões, desaparecimentos, tortura e morte de adversários. Mas, no meio militar, não eram poucos os radicais que se opunham a tal distensão. 

Os atentados se sucediam, a deixar claro que não faltava quem estivesse decidido a resistir: bombas explodiam em bancas de revista, em fim de agosto de 1980, Dona Lyda Monteiro da Silva foi morta ao abrir um envelope com uma carta-bomba enviada à Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro. 

No Rio Centro milhares de pessoas assistiam a tradicional apresentação de artistas comprometidos com a redemocratização. Do lado de fora, uma bomba explodia acidentalmente dentro de um carro em que dois militares se preparavam para promover um atentado. Um sargento morreu com a explosão do artefato em seu colo, ficando mutilado o capitão que o acompanhava na ação terrorista. 

Viu-se que não era um fato isolado. Pretendiam que a explosão causasse imenso tumulto e provavelmente mortos e feridos. A ideia era responsabilizar grupos de esquerda pelo atentado e, assim, retardar a abertura democrática. 

Mas lembram que a história se repete "a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”?

Faltam ainda pouco mais de dois meses para que se completem dois anos desde a grande ação terrorista de 8 de janeiro de 2023. Uma multidão que pretendia pôr fim ao governo de Luiz Inácio da Silva, recentemente empossado, invadiu e vandalizou os prédios do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do STF.

As principais lideranças do movimento, com apoio de parlamentares a eles vinculados, tentam articular a aprovação de medida legislativa para que ninguém seja punido por aquelas ações. 

Mas vemos que há inquietude nas bases do grupo golpista, os mais afoitos tentando ações mais ousadas, com atentados terroristas.

Tudo indica que nessa quarta-feira (13 de novembro) um ato isolado pretendia sinalizar nessa direção, com a invasão e a explosão de uma bomba no prédio do Supremo Tribunal Federal, onde estão sendo julgados os responsáveis pela ação golpista no início do governo eleito em 2022.

Aparentemente, um acidente frustrou o "apito de cachorro", levando a bomba a explodir antes de consumada a invasão, vitimando o próprio terrorista. Antes, ele havia anunciado o atentado em redes sociais, inclusive indicando vítimas que pretendia ver atingidas, a que se referia como "comunistas de merda".

De positivo, ficou evidente que esse tipo de ação pode se multiplicar, ainda mais se estimulada pela impunidade que ainda beneficia os seus principais líderes. 

As autoridades são, portanto, chamadas à responsabilidade. Nada de anistia. Punição já. 

(*) Jornalista, Professor Universitário e Administrador

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

AS CARPAS E AS MOEDAS

 Fernando Tolentino*


Longe do contato com seres humanos,

protegidas por contenções de cimento

que as mantinham reclusas naquele espelho d'água,

tendo para si a exclusividade de água permanentemente pura, 

sem o risco de lhes faltar a sua ração, 

a vida parecia assegurada por sabe-se lá quantas décadas. 

Encerradas naquele cubículo cimentado,

ali onde militares em constante revezamento pareciam afastar qualquer proximidade de estranhos, 

parecia certo que nenhum risco delas se aproximaria.

Muitas centenas de quilômetros ao sul do Território Yanomami,

jamais as águas em que há muitos anos flutuavam

poderiam tornar-se impuras.

Quem imagina que não sobreviveriam?

Até a pandemia foi uma realidade distante 

que não atingiu as carpas do Palácio.

Aqueles frágeis seres decerto sonhavam com uma vida quase eterna.

Nunca poderiam supor que o seu único risco estava nas milhares de moedas que forravam o piso da sua piscina.

Quantos anos se passaram sem que elas despertassem a ambição dos inquilinos do Palácio. 

Mas há quem não resista a tudo que lembre fortuna. 

E, se não foram atingidas pelo mercúrio do garimpo ilegal

ou pela falta de oxigênio causada pela covid,

as carpas do Palácio também não resistiram à falta de respiração 

que lhes traria a avidez despertada por aquelas moedas com que antes dividiam tão harmoniosamente sua morada.

*Jornalista

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Seu nome não era Gal – ainda

 RUY CASTRO SOBRE GAL COSTA, 2013

Era Graça ou Gracinha, como a chamavam seus amigos do Solar da Fossa, um casarão colonial de Botafogo, no Rio, onde ela morava, e cujos inquilinos eram tão jovens, criativos, esperançosos, boêmios, bonitos e duros como ela. Caetano, um deles até pouco antes, se mandara para São Paulo. Mas Paulinho da Viola, Itala Nandi, Rogério Duarte, Claudio Marzo, Betty Faria, Maria Gladys, o pessoal do Teatro Jovem e muitos outros, seus vizinhos de porta, continuavam ali, às vésperas das grandes coisas que iriam lhes acontecer.


Era 1967, outubro ou novembro, com o verão às portas. Novo no Solar e na vida, eu a via todos os dias no jardim - vestido e cabelos curtos, sozinha, pensativa, 22 anos, quase incorpórea. Um ano antes, Caetano gravara seu primeiro disco, "Domingo", em que dividia com ela a capa e a faixa de abertura, "Onde Eu Nasci Passa um Rio", e lhe reservara várias faixas para que ela brilhasse sozinha.


O nome Gal estava na capa, sem dúvida, até acima do de Caetano. Mas a voz que saía da vitrola, cantando "Avarandado", "Maria Joana" e outras, parecia tão imaterial quanto sua dona. Era uma voz da bossa nova, voz de travesseiro, feita para soprar intimidades -mas etérea na afinação e quase cruel em sua perfeição. Era como se ela tivesse vindo ao mundo para cantar as canções que João Gilberto nos ficaria devendo.


Algumas semanas depois, já estaríamos em 1968 - ano de que ninguém sairia como entrou. Meninos viraram homens, homens viraram meninos. Correrias, patas de cavalos, tiros nas avenidas, novas palavras de ordem e desordem. Nos quartéis, rumor de sabres – era a noite a caminho. Nos auditórios, artistas de terno da Ducal, de vinco impecável, viam-se dividindo o palco com os de camisolão de bananas e não entendiam nada –era o tropicalismo.


Não me lembro de Gracinha no Solar em 1968. Se continuou lá, já não era vista flanando pelo jardim em que Caetano mandara plantar "folhas de sonho", como na letra de "Panis et Circenses". Ou então fui eu que, aberto às irresistíveis solicitações das ruas naquele ano, não parei muito tempo para observar. Um dia, alguém ligou um rádio e ouvimos sua voz cantando "Baby". Cantando bonito. Por onde andaria Gracinha? Até que, em 1969, essa voz - subitamente extensão de um corpo, ríspida, descabelada, nacos de pele à mostra - anunciou: "Meu nome é Gal! Meu nome é Gal!"

E só então descobrimos que Gracinha tinha se despedido do Solar e do mundo, e dera seu lugar a Gal Costa.

PUBLICIDADE

Folha de S.Paulo 2022

sábado, 6 de novembro de 2021

MARÍLIA COMO UM BEIJA-FLOR

    A nossa homenagem à Marília Mendonça - que de forma trágica e precoce deixou a " todo o mundo" perplexo e desolado - vem por meio deste artigo do jornalista mineiro, radicado em Brasília, José Edmar Gomes. 

José Edmar Gomes (Brother)


    Ela tinha apenas 26 anos, um filho, o mundo a seus pés e um coração que vivera tanto que parecia ter vivido mais do que todos nós. MM era dona de certas palavras e da melodia. Isto estabelecia empatia imediata com o público feminino (e o masculino, também, por que não?). 
    Ela deu voz às mulheres que, até então, engoliam caladas a arrogância e a cafajestagem de nós, homens. Sua certeza de que estava certa, no que cantava e fazia, lhe dava enorme segurança, a fazia feliz e deixava as mulheres, que foram infelizes no amor, de alma lavada.

    Ninguém se lembra de tê-la visto aborrecida ou queixando-se do quer que seja. Se chorava, era porque não prendia emoção que sentia. As lágrimas cristalinas logo se transformavam num sorriso lindo; dos mais sinceros que já vi. Ela não era alegre apenas porque artistas têm que ser simpáticos.

    MM, além de carregar, em si, a alegria e beleza juntas, trazia em seu discurso musical um forte tom libertário, que ia além das mesas de butiquim e chegavam às mentes das mulheres oprimidas que absorviam suas palavras, como um bálsamo para suas dores, mas também como uma resposta definitiva à opressão que engoliram por muitas gerações.

    Nunca foi fácil ser mulher no Brasil e no mundo; desde tempos imemoriais, e MM sabia disso. Mas, ao invés de deprimir-se ou levantar bandeiras raivosas, cantava. E como cantava.

    Cantava e compunha, desde criança e, mesmo não sendo dona de um padrão de beleza exigido pelo mercado, nem apelando para figurinos vulgares, dos quais as “estrelas” de agora abusam, MM se tornou uma diva de sensualidade natural. Iluminava a todos com a luz e a sabedoria, que vêm dos espíritos superiores.

    Inconscientemente, ela carregava, no seu espectro espiritual, algo de Merlyn Monroe, de Dolores Duran, de Ângela Maria, de Inezita Barroso, de Clarice Lispector e da mulher que amamos. Acredito que vocês me entendem, não é?

    Suas verdades e certezas estavam inteiramente expostas, como uma rosa que não volta a ser botão. Ela era a Flor de Goiânia – a nossa esplendorosa Nashville do Planalto – onde, inicialmente, negou o sertanejo, mas acabou se apaixonando pelo gênero, depois de uma paixão de esfregar o chifre no chão. 

    MM, a compositora, como toda poetisa, sabia absorver os sinais divinos, com que a natureza nos presenteia -- tanto nos dias bons, quanto nos dias ruins. Ela -- que cantava como um uirapuru – morreu como um beija flor, deixando um pingo de néctar dentro da grande cachoeira de absurdos, que corre em todas as vidas. 

“...E a flor conhece o beija-flor

E ele lhe apresenta o amor

E diz que o frio é uma fase ruim

Que ela era a flor mais linda do jardim...”

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Um mito que se desmancha no ar

 

Texto do meu amigo jornalista José Edmar Gomes, o Brother. Do blefe à ré.


O mito levou muita gente às ruas. Muito mais do que ele e a oposição esperavam. Esta constatação lhe deu o gás que faltava para ele secretar seu veneno contra as instituições democráticas, que ele detesta e são o empecilho ao seu projeto golpista.

A opção pelo golpe ficou clara, como o sol de Brasília, em suas falas, aqui e em São Paulo. Só que a incapacidade de sua mente, naturalmente obtusa, o impede de ir adiante. Ele quase se derreteu, diante de um mar de seguidores, que o endeusavam, neste 7 de Setembro.

Perdeu a grande oportunidade de colocar em prática seu intento. Afinal, o povo estava nas ruas, apoiando-o e crendo, cegamente, no mito que ele representava. Registre-se que este mesmo povo comportou-se admiravelmente, como devem ser as manifestações democráticas. Em nenhum momento, houve violência, como queria o, hoje, indigitado cantor Sérgio Reis.

O povo cria no mito, porque, bastava uma palavra ou um pedido seu para que aquela multidão aprovasse qualquer iniciativa dele, no sentido de elaborar um projeto de lei, reformando a Constituição, varrendo do mapa institucional o Supremo Tribunal Federal, e outras estruturas constitucionais.

Isto, dentro de determinado prazo, sob pena daquele povão invadir o Congresso e exigir dos parlamentares a aprovação da medida de retrocesso. Mas o mito preferiu mostrar sua ignorância ao propor uma reunião do Conselho da República, que ele não sabe o que é, nem para que serve.

Outra provocação inócua do mito foi a declaração de que não vai obedecer às decisões de um certo ministro do STF. OK. Acho que entendi: não obedece às decisões de um certo ministro... mas, poderá obedecer às decisões dos outros dez. Huum... quem é que entende cabeça de mito?

Parece que, na hora de partir para o tudo ou nada, o mito deu um passo atrás e não teve a necessária coragem para consumar o golpe. Afinal, para que foi montada toda aquela estrutura? 

O povão estava nas ruas, com vigor cívico no coração. Povão e classe média queriam que o seu mito fizesse algo para baixar o preço do feijão, do arroz, do chambaril, do osso buco, da carne (carne?), do gás, da gasolina, do diesel, do aluguel, da cachaça, da cerveja e para que consigamos um trabalho, pelo amor de Deus.

Ocorre que mitos, surgidos do dia pra noite, têm pés de barro e coragem mínima para grandes ações. Eles se escondem atrás de um discurso tosco e de ações reles, que só foram absorvidos por seus eleitores, devido a outros erros de percurso, que a direita e a esquerda já perpetraram, no comando do Brasil.

Por tantos erros, os demais mitos que governaram o Brasil, deixaram o Palácio pela porta dos fundos, ou dentro de um caixão, e o mito da vez faz tudo para que esta situação se repita,  com o intuito de se tornar um ditador e nunca mais levar o povão às ruas. Que destino cruel o nosso! (Quem é que entende cabeça de mito?)


Caudilhos de ocasião sempre têm visão caolha de Nação e de governo, mas a têm. O mito em questão, no entanto, não tem nada disso, muito menos o apoio das Forças Armas, que gostaria de ter. As FAs conhecem seu papel institucional de defesa do Estado e da Constituição. Nem tudo é retrocesso, felizmente.

A grande cartada do mito foi convocar seus eleitores para a grande manifestação do 7 de Setembro. Eles obedeceram, mas ninguém explicou como a banda iria tocar. O mito disse, apenas, que não vai mais obedecer a um certo ministro e que convocaria o Conselho da República...

Parece que o mito queria era que o povão partisse pra a violência e as forças policiais e militares tivessem que intervir e o guindassem ao comando do retrocesso, como propunha algumas faixas, em meio à multidão.

Ocorre que o povo não é bobo, nunca o foi. Cumpriu seu dever cívico, da melhor maneira possível, enquanto o mito destilava suas intenções caudilhescas e ditatoriais. O povão esperava a proposta do mito, que esperava a reação do povão, que não estava a fim de confusão... 

E nada aconteceu; a não ser a palavra canalha, dirigida ao certo ministro, que se tornou o bode expiatório do 7 de Setembro e, talvez, o símbolo de que a Pátria precisa, agora. Mas atacar um ministro só é covardia ou é um ataque à Corte inteira. Ou, ainda, um completo despropósito. 

O mito apresentou sua pior performance, num momento em que seu eleitorado esperava tudo dele. Nunca mais haverá oportunidade igual.

Com tal performance, ele conseguiu apenas ampliar a antipatia que o Congresso e demais instituições democráticas já nutrem por ele. O que o aproxima, inexoravelmente, do impeachment.   

 (José Edmar Gomes, 8 de setembro de 2021)