A publicação abaixo tem caráter pessoal e familiar. A crônica, especialmente escrita pela ocasião do centenário de nascimento – comemorado pos mortem – de Eunice -Guerra- Lemos Rosal, a Nina, narra a simples e ao mesmo tempo fabulosa trajetória da fantástica mulher que completaria 100 anos no último 13 de janeiro.
Aos leitores, desejo uma viagem completa em uma crônica com ares de fábula que descreve, de maneira resumida porém sublime, uma brilhante história de vida.
Daniel Guerra
Centenário de Nascimento de Nina (Eunice -Guerra- Lemos Rosal)
13 de janeiro de 2011
Por Jorge Luiz Alencar Guerra
Eunice
O ano de 1911 começara para o casal Joaquim e Eleutéria não muito diferente daqueles dois últimos após o casamento, exceto pela expectativa da chegada de mais um filho.
As noites quentes e o céu carregado de nuvens levavam todos a imaginar que seria um ano de bom inverno, como é chamada a estação chuvosa na região. De vez em quando a lua crescente enciumada do tempo fechado, teimava em despejar clarões iluminando a grande lagoa do Boqueirão e fazendo correr uma brisa que subia do rio Gurguéia para a Casa Grande.
Os preparativos para a chegada do segundo filho do casal Joaquim e Eleutéria eram intensos. Os panos e cueiros já estavam lavados, passados e guardados em um baú reservado para este fim; as mezinhas e os ungüentos depositados sobre a mesa no canto do quarto; a despensa reforçada por mantas de carne seca de um boi malabar pasteiro nos baixões do Sítio. A qualquer hora começariam os sinais do iminente parto.
E, para não fugir à regra, tudo começou no meio da noite do dia 12 de janeiro, após uma chuva intensa entrecortada por lânguidos relâmpagos e preguiçosos trovões. Os primeiros clarões do dia 13 de janeiro já permitiam a visualização do horizonte na região do nascente quando o choro forte e estridente anunciou o nascimento da criança. Logo a notícia espalhou-se pela Casa Grande e pelas áreas de servidão: nascera uma menina e a ela foi dado o nome de Eunice. Com o passar dos anos, apesar de mirrada, demonstrava uma personalidade forte e um alto senso de aglutinação.
Em 1935 casou-se na fazenda Boqueirão, com Milton Rosal, fixando residência em Nova Lapa, hoje Cristino Castro. Ali nasceram os dois primeiros de um total de oito filhos do casal.
Coube a Eunice a missão de tomar posse e edificar benfeitorias na área de terra desmembrada no extremo norte da fazenda Boqueirão. Assim nascia a fazenda Estreito, que para todos nós vai da lúdica infância ao inevitável vôo com as próprias asas como se pássaros fossemos.
Nina
Quis o destino que Eunice, já mãe de Joaquim, com sua peculiar hospitalidade recebesse em sua casa a afilhada Maria Eunice que por não conseguir chamá-la de madrinha, pela tenra idade, chamou-a de Nina.
Esse tratamento carinhoso foi seguido primeiramente pelo filho Joaquim e pela sobrinha Tancy. E depois, a eles se seguiram os filhos, as noras, os genros, os sobrinhos, os netos, os amigos.
Nina, que significa menina graciosa, tornou-se identidade e referência.
Apesar de ser mãe de oito filhos e de ter criado muitos outros, Nina não foi chamada de mãe. Coube a Fabrício, filho de Celso, ousar e ter o privilégio de ser o primeiro neto a chamá-la de Vó Nina.
Viúva aos 37 anos se viu obrigada a manter a família assumindo todo o serviço da roça, orientada pelos irmãos os quais a tinham como referência e faziam do seu casarão o porto seguro após a lida diária. A relação entre ela e os irmãos era tão intensa que Celso Guerra passou a dormir na porta de seu quarto desde a morte prematura de Milton.
Nina desafiou e venceu obstáculos com tenacidade e temperança, e deixou uma marca indelével como a de gerir o funcionamento de um engenho de cana-de-açúcar produzindo mel, rapadura, batidas e cachaça que contribuíam para o sustento da família e para manutenção da propriedade.
Os desafios surgiam, pondo à prova a perseverança de Nina. Não bastassem as preocupações com os filhos, com os aderentes, com a casa, com o gado, com as criações e, ainda, surgia o imponderável como a testá-la. Certa feita , as roças que ficavam em frente à casa e que serviam de manejo para os rebanhos, do nada, começaram a pegar fogo. Nina, de forma beligerante, pediu ajuda aos homens para fazer um aceiro na tentativa de isolar o fogo. Invocou a ajuda de Deus para que o fogo fosse controlado e no seu íntimo e com a sua simplicidade fez uma promessa: se o fogo não queimasse as roças, iria a pé, na companhia da inseparável amiga Alice Chaves e do compadre Ananias Borges, a São Benedito, distante 12 léguas (cerca de 72 km). Fogo controlado, promessa paga.
Aconselhada pelo primo Samuel Guerra que a visitava, Nina pensou grande e mesmo com o coração apertado e a saudade dilacerando o peito fez sair os filhos, a partir de Joaquim, em busca de estudos já não disponíveis na região. Aceitava a saudade da separação e a falta de notícias mas não relutava em ser enérgica na determinação de que os seus filhos deveriam ser doutores. A nenhum foi dada a obrigação de que deveria cuidar da fazenda. O saber estava acima de tudo.
Exímia costureira de calças, calções e ceroulas, Nina teve colocada à prova a sua habilidade manual ao intervir de forma positiva em procedimento cirúrgico salvando a vida de Anísio, um de seus filhos de criação, que durante uma festa fora esfaqueado e teve o intestino perfurado. A técnica e os instrumentos usados no procedimento demonstraram toda a habilidade de Nina. Com uma faca esterilizada no fogo do álcool aumentou a incisão para que pudesse suturar com agulhas de costura os dois furos. Usando azeite-de-doce e tição de lenha aqueceu o intestino fazendo com que o mesmo retornasse à cavidade abdominal e, posteriormente, procedeu à sutura do tecido utilizando linha e agulha comuns. Como não dispunha de mais recursos achou por bem despachar um positivo a Gilbués para falar com o Dr. Paulo, médico da cidade, que imediatamente recomendou o uso da penicilina, à época, recém descoberta. Para conservar o medicamento foi usada a técnica de imersão em uma bacia com areia molhada e com a água renovada periodicamente para manter a temperatura. Uma vida foi salva pela disposição, iniciativa e força de mulher sertaneja representada ali por Nina. Mais uma vez, contou com a ajuda do compadre e sempre presente Ananias Borges.
No Piauí, especificamente na beira rio do médio Gurguéia, Nina foi muito mais que uma mulher. Foi conselheira, foi médica, foi modista, foi amiga, foi mãe de um sem número de meninos e meninas que o destino levou à sua casa. Para mim, foi a tábua de salvação e a providência sábia para que eu aqui hoje estivesse. Não fosse ela, certamente, eu teria ficado sob os cuidados de alguém que não teria o desvelo e a perseverança para que eu sobrevivesse à ausência de minha mãe, que por motivo de doença foi afastada do meu convívio. Durante os meus primeiros seis meses de vida ela cuidou para que não me faltasse o leite. Sem medir esforços e enfrentando as intempéries da ocasião levava-me para que mãe Deja, mãe de Neuzita, pudesse amamentar-me. Na falta de leite humano improvisava o leite de jumenta e o de cabra. O importante era saciar a fome e prover a vida.
O nascimento dos netos, excetuando os de mãe Milce, marca o início do afastamento de Nina da fazenda Estreito e, por conseqüência, um vazio na vida dos que com ela viviam e conviviam.
Mas nem mesmo o tempo pode impedi-la de aprender. Ávida e curiosa, com tempo de sobra para observar, foi aprender com a neta Belaura a arte de fazer crochê, tornando-se crocheteira refinada.
Faltava-lhe, ainda, algo para completar a sua rica experiência de vida. E o que lhe faltava era ninar a sua terceira geração. E para a sua graça os bisnetos vieram em abundância na primazia de Rebecca.
Em 4 de agosto de 1993, Nina foi chamada a desempenhar outra missão. Desta feita, junto ao Criador que, certamente, estava necessitado de uma guerreira com experiência e sensibilidade para ninar aqueles que eram chamados de volta à casa do Pai.
Brasília, 29 de janeiro de 2011