segunda-feira, 5 de outubro de 2015

ISSO NÃO PRECISAVA ACONTECER(*)

O texto abaixo do mestre Fernando Tolentino nos remete à necessária reflexão sobre as causas e circunstâncias em que vidas são ceifadas por acidentes, muitas vezes, evitáveis, interrompendo sonhos, criando lacunas e deixando-nos com uma sensação de incapacidade de agir, de atuar e de mudar.
Nas estatísticas citadas no texto, as vítimas, em sua maioria, são jovens e cheias de projetos profissionais e pessoais. 
Agora, Rodrigo, cheio de vida, 20 anos,  foi a vítima fatal da vez!
Não podemos simplesmente assistir, de forma apática, a esta mortandade, fruto de uma convivência cada vez mais cruel e desrespeitosa entre o maior e o menor; entre o mais forte e o mais fraco.
Isto precisa acabar! Basta! 
       


Reuni toda a coragem que consegui e fui ao local do acidente. Reúno mais ainda agora para este relato.
Esplanada dos Ministérios, pouco depois da Estação Rodoviária. Uma avenida larga, com seis pistas, trecho levemente ascendente e requerendo baixa velocidade, até por estar imediatamente antes do acesso ao estacionamento do Conjunto Nacional Brasília.
Os ônibus de centenas de linhas que saem da Rodoviária avançam pelas pistas da esquerda ou fazem o contorno, também à esquerda, para seguir em direção à Asa Sul. A travessia é feita somente pelos que precisam usar a W 3 Norte, inclusive por existir um ponto em frente ao Setor Hoteleiro Norte em que podem precisar parar, após aquele viaduto visível na foto.
Vi ônibus tentando fazer essa manobra, os cobradores usando o braço para pedir a preferência aos carros menores.
Não queria julgar ninguém, mas sentir e constatar o que pode ter ocorrido.
Os ônibus podem, sim, aguardar o fechamento da sinaleira para sair da Rodoviária com a avenida inteiramente livre e atravessar as pistas.
Mas seria esperar muito? Esperar dos motoristas de ônibus o que os de veículos de passageiros não se dispõem a ter?
O quê? A compreensão de que o trânsito precisa ser solidário.
A causa real é uma só. Ao motorista jamais ocorre que, ao seu gesto, sucede o risco. E o risco pode ser até de morte.
Cada condutor vê o trânsito como uma disputa e, portanto, um processo em que precisa se dar bem. Vencer. Superar os outros.
Por isso, carros maiores, mais velozes, mais potentes. E mais seguros, para os seus próprios passageiros, é claro. Mais bonitos e caros, também, pois a competição não é apenas de disputa de espaço no asfalto, como igualmente de status.
Por incrível que pareça, não é apenas uma disputa entre condutores de máquinas, mas não raro esses fazem a disputa de espaços também com os pedestres.
UM PAÍS QUE MORRE AOS POUCOS
Por isso, o Brasil perdeu 42.266 vidas por causa de acidentes de trânsito em 2013. E (pasmem!) comemorou que o número fosse somente este!!! É que tinha havido uma redução com relação às 44.812 famílias que sofreram a mesma dor insuportável em 2012 e as 43.256 de 2011.
Isso mesmo, 130.334 mortes em apenas três anos. E ainda é motivo de “comemoração”.
É mais que as populações do Gama, Santa Maria, Guará, São Sebastião, Sobradinho ou 18 outras regiões administrativas do Distrito Federal. Mais que o dobro dos residentes no Cruzeiro, onde eu moro.
Eu estou falando de mortes. Nem vou contabilizar os números relativos à invalidez permanente, as múltiplas sequelas, o volume de recursos públicos consumidos, retirados da atenção básica à saúde.
O mais arrasador é que, se cada um de nós refletir durante não mais que dois minutos, vai chegar à óbvia conclusão de que tanta dor poderia ter sido simplesmente evitada. Parte pequena por meio de mais cuidados com os veículos ou com as estradas e a sinalização.
Quase todas as perdas seriam evitadas com a mera mudança de atitude dos condutores de veículos.
Chegamos ao terrível acidente de Rodrigo.
Jamais ocorre ao motorista o risco que o outro corre, seja um pedestre, um animal, um ciclista, um motociclista ou mesmo o condutor de um veículo menor ou menos seguro. A conclusão é fácil: cabe ao outro se proteger. Como Rodrigo tentou. Ao ser fechado na quinta ou na sexta faixa da travessia do ônibus, ele se precipitou para fora da pista, atingindo uma placa e uma árvore.
Há relatos de que a alegação do motorista do ônibus foi de que não o viu. Mas precisava ver. Precisava mais: evitar que ocorresse uma situação em que encontrasse outro veículo em seu caminho. Ou seja, deveria evitar a situação de risco.
Não quero incriminá-lo. Quero a alma desse motorista em paz, até porque ele continua com a arma na mão.
EM NOSSO MEIO HABITAM ANJOS
Eu quero para aquele motorista a alma da jovem Taís, em que habita um anjo. Da sua janela, no ônibus, viu o acidente. Fez que o motorista parasse. Mudou o rumo do seu dia: desceu, buscou acudir Rodrigo, avisou a mãe, recolheu os seus pertences e o acompanhou ao hospital. Depois que já não havia nada a fazer, chorou discretamente ao lado da família durante algumas horas e saiu, enxugando as suas lágrimas.
Peço a reflexão de cada um. Ao ver uma moto, o que lhe passa na cabeça:
“A moto é frágil” ou a “a moto é ágil”?
Se a imagina como “frágil”, é muito provável que você seja um condutor solidário, que usa a sua destreza para evitar um sinistro. Se lhe passa somente a ideia de que é “ágil”, mais ágil que você consegue ser, em um trânsito às vezes demasiadamente moroso, a muitos é possível que ocorra uma atitude de despeito, não raro traduzida na enorme agressividade que sofrem os motociclistas.
Não estranhe. Passa na cabeça de muitos que é preciso vingar-se daquela agilidade. Nem lembram que, caso a compra da moto tenha sido uma opção de consumo – e não uma decorrência de necessidade econômica – o motociclista privilegiou a agilidade, mas abriu mão do conforto e da segurança de quem está acomodado em um automóvel. Submete-se a condições adversas de clima, muitas vezes tendo que se deter para proteger-se da chuva.
Conheço essa atitude agressiva de motoristas. Eu mesmo já a sofri quando a moto era o meu meio de transporte e eu jamais a usava para afrontar nenhum motorista. Nem mesmo o seu espírito competitivo. Eu me percebia frágil e isso já seria o suficiente, mesmo que não visse o trânsito pelo viés da solidariedade.
Saiba que os motociclistas mortos em acidentes foram 11.268 em 2011, um crescimento de 263,5% com relação a 2001, dez anos antes.
Talvez nenhuma dessas famílias, nenhum amigo, precisasse realmente ter chorado ou viver, depois, tudo o que significa a falta de alguém querido e muitas vezes indispensável à sua sobrevivência.
Sei que Rodrigo, com seus 20 anos, usava a sua moto (há apenas poucos meses) com perfeita consciência do risco que representava, temendo-o e respeitando-o. Não há como trazê-lo de volta.
Que pelo menos fosse a última vítima.
Eu acho que basta. E você?
Fernando Tolentino¹
As fotos 1 e 3 são da fotógrafa Vanessa Ottoni, mãe de Rodrigo


(*) Reproduzido do Blog de Tolentino 

¹Fernando Tolentino é administrador e jornalista.

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